PAIXÃO SELVAGEM
(para Eron Barbosa)
I
Teu amor são asas azuis
para céu infinito de azul claríssimo
Tece o azul turquesa,
emana o lilás e o violeta
Faz tremer fundo infinito,
antes espiral dantesca
Não que retire leite de pedras
mas agora dói menos
Clarão no fim do túnel
onde chego em repouso
Retornam alegrias azuis
afundadas na ausência de luz
Você, página de um tempo
bom da Idade Média
Rolando pelo campo,
ventos desenhando a plantação
Caminhadas sorridentes,
pique-esconde, derrapadas
Tristeza, palavra malsã
do dicionário decepada
Tonto do sangue de Cristo
farto de hóstia consagrada
Sábio louco e lúcido
após mil tormentas
Em mares noturnos
de ressaca e só Deus sabe
Reclamei um corpo
que me afagasse
Premonição e bom presságio
sem te ver eu já te via
Tu comigo na cozinha
nosso lanche produzido em nossa pia
Sanduíche havaiano ia e vinha
Pasta de abacate,
carne de atum, cenoura e alface
Nossa onda, nosso surf
da janela o mar se via
De fora, sobrevoando
rente ao teto ia nos vendo
Flanava perto, indo e vindo,
em degradê
Eu te falava das ondas salgadas
da Praia da Avenida
De mares não desvendado
às quatro da matina, chapado
Com tainha desenhada
na barriga da onda perfeita
Teu sorriso largo inteiro
e nenhuma dor
Os olhos verdes grudados no meu
e nenhuma dor
Nenhuma dor é o teu nome
deus te abençoe deus te enviou
Ouvindo trombetas
leio o papiro divino
Nada me fala
em metáforas senão sobre mim
As trombetas sopram
e a voz de deus ecoa
Mandamentos eternizados
em pedra e cravado está
Ele me manda subir
como fez com Orfeu
E quando cá estou
esta terra disposta a me amar
Este paraíso
feito de lagoa, mar, restingas, trilhas
Um espelho do qual
tenho engolido e me fartado
Em paz e dono de mim
resgato-me ao ar livre e ressurjo
Quebrado e sujo arfando
e mais um sopro de vida
O pulo do gato,
o passeio do gato nas telhas, nas calhas
Nas bicas pingando
água limpa na boca, na língua
Nas têmporas franzidas
do gato buscando calmaria
Sem saber que chegarias
sobrevivo e convalesço
Mais sede de vida a cada dia
Sublime é a minha vida
e que assim seja
Vida, vida, vida,
sol, sal, lagoa, mar, vento e ar
Pássaros, silêncios,
cantos, canoas, descansos
Foste o enviado,
o recado, a metáfora de deus
Confirmando a criança feliz
a luz da qual me fiz
O caminho pro futuro,
a resposta em carne e osso
A fusão dos nossos sorrisos
é a imagem de deus.
II
Estou eu por aí de novo
circulando nos botecos
Gargalhando pelas ruas
nas noitadas muito loucas
Bêbado pássaro noturno
voando rumo à Barra
E você que da cabeça não me sai
pelo rastro da lua vai
Vôo rasgando sozinho
por essas avenidas iluminadas
Vendo, sorvendo
os colares de luzes das estradas
Bebo à Ponta Verde
e seus coqueiros de Miami passam
Gozo da lua no mar
espelho negro e prata de luz salgada
Estou eu por aí de novo
levando alguma figura pra casa
Ouvindo a revoada de pombos
no silêncio do cais do porto
Botos no final da tarde,
broto tão massa que o peito arde
Mar, gordo mar, porto-mar volta e meia,
maré cheia, alto mar
Ondas selvagens quebrando
pedras no sal da vida queimando
Estou eu por aí de novo
sobrevivendo sem maldade
No eco da solidão carregando
o veludo vermelho da saudade
Estrada de barro,
piscina de água claríssima
Pontes sobre mares e água doce,
dulcíssimas
Tanta brisa na varanda
inverno peito ardente e eu tão somente
Vento marinho
praieira vegetação cresce verdejante reluzente
A Rhythm & Blues Radio
toca nessa tarde o nosso amor poente
Abraço meu corpo chorando na chuva
que não pára de cair
A juventude desse vivo-morto
há de ressurgir nesse jardim
Plúmbeo céu das cinco horas
quantos amores hoje e outrora!
Renegando a solidão
arrepio e anuncio teu amor maior que a vida!
A solidão é um espelho
e quem se ama não despenca
O reflexo do passado
é um telão atrás de mim quantos anos vivi!
Cada volta é sempre menos inocente
e a ida lhe traz mais reticente
Estou eu por aí de novo
nu, vazio, louco pra te encontrar
Com a certeza que você me ama
e que a gente nunca mais vai se acertar
III
Desta vez quando você se foi
Cobras do campo coando pelo arrozal
Rios esquecidos de clareiras de água morna
E ratos brincando com gatos
Tua alma pairando suave na sombra
Bonança dos tempos
Vida umedecida e doce com você
Depois que você se foi
Mato crescendo nos séculos de Marechal
Paz habitando nas ruínas do presídio
Quando você se foi assim abrupto
Sua imagem que dor
quando você do carro desceu
Estático no ponto de ônibus
seu sorriso e seu adeus
Meus olhos marejados na estrada
E a cabeça na foto de teu corpo
parado no ponto
Sua alma partindo comigo
colada, grudada amante amada
IV
O mais legal nas suas idas é a sua volta
Vai sair, vai amar, a vida é mesmo assim
Mas esse mundo que a gente construiu
É mais sublime que o que o substituiu
Você me ama e é minha mão delírio
Minha boca faz gozar a alma do seu lírio
Mãos e bocas viajando na brancura
Desse corpo macio, gelado, na secura
Seu caminho da felicidade dá num céu azul
Se minha língua busca seu órgão entrega
Se meu tato esfrega, seu tato se adéqua
A gente fez um mundinho pra viver juntinho
Imaculados pelo mar e pelo ar, vento Nordeste
Bem-te-vis te vendo voando te vendo voltando
Nossas almas acoplam-se perfeitamente
Carne e osso de um corpo só
Perfeitamente erguidos em simbiose
Engravidados de um nós osmose
A realeza dessas comunhões
Não se deixará roubar por nós, ladrões
É nesse ponto que sua ida é sempre volta
Nesse ponto para o ônibus, abre-se a porta
Lotado de anjos e trombetas pressagiam sua rota
V
Tá tudo bem amor
Vai com tua gula pra vida
Que volto cansado da noite pra casa
Na nossa estória
Não há ganhador nem perdedor
Estão paridas duas almas antes unidas
Rompamos com as amarras
E arranquemos das carnes essas garras
Quem sabe assim a gente entenda
Aceite a distância e a divina oferenda
Que o ciúme é monstro verde da lagoa
Que a solidão aprisiona e entedia
Que nenhum amor sobrevive sem autonomia